Detonadores


"- Como vê, todos temos no nosso interior os elementos necessários para produzir fósforo. Mais ainda, deixe-me dizer-lhe uma coisa que não confiei ainda a ninguém. A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos, como na experiência que acabei de fazer, de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada. A vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos. Por momentos sentir-nos-emos deslumbrados por uma intensa emoção. Dar-se-á no nosso interior um agradável calor que irá desaparecendo pouco a pouco conforme passa o tempo, até vir uma nova explosão que o reavive. Cada pessoa tem de descobrir quais são os seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se dá quando um deles se acende é que alimenta a alma de energia. Por outras palavras, esta combustão é o seu alimento. Se uma pessoa não descobre a tempo quais são os seus próprios detonadores, a caixa de fósforos fica húmida e já não poderemos acender um único fósforo. Se isso chegar a acontecer, a alma foge do nosso corpo, caminha errante pelas trevas mais profundas procurando em vão encontrar alimento sozinha, não sabendo que só o corpo que deixou inerme, cheio de frio, é o único que poderia dar-lho."

Passagem do livro Como Água Para Chocolate de Laura Esquivel, que estou a reler. Não resisti à simplicidade desta teoria e à sua veracidade.

Perguntas sem Resposta


"Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que em nós existe, então o que acontece ao resto?"

Pascal Mercier em "Comboio Nocturno para Lisboa"

200 Anos

 D. Antónia Ferreira (1811 - 2011)

Se podia viver sem o Vinho do Porto? Poder, podia, mas não seria a mesma coisa... gosto tanto:)
Abençoada seja D. Antónia.

Meditação


Às vezes, quando a noite vem caindo,
Tranquilamente, sossegadamente,
Encosto-me à janela e vou seguindo
A curva melancólica do Poente.

Não quero a luz acesa. Na penumbra,
Pensa-se mais e pensa-se melhor.
A luz magoa os olhos e deslumbra,
E eu quero ver em mim, ó meu amor!

Para fazer exame de consciência
Quero silêncio, paz, recolhimento
Pois só assim, durante a tua ausência,
Consigo libertar o pensamento.

Procuro então aniquilar em mim,
A nefasta influência que domina
Os meus nervos cansados; mas por fim,
Reconheço que amar-te é minha sina.

Longe de ti atrevo-me a pensar
Nesse estranho rigor que me acorrenta:
E tenho a sensação do alto mar,
Numa noite selvagem de tormenta.

Tens no olhar magia de profeta
Que sabe ler no céu, no mar, nas brasas...
Adivinhas... Serei a borboleta
Que vendo a luz deixa queimar as asas.

No entanto — vê lá tu!— Eu não lamento
Esta vontade que se impõe à minha...
Nem me revolto cedo ao encantamento...
— Escrava que não soube ser Rainha!

Fernanda de Castro

da Condição Humana

 
Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme a humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos,
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.


Ary dos Santos